Humberto Firmo - Calango do Cerrado

25 de set. de 2014

Facúndia


Discurso sobre o Filho da Puta

“Discurso sobre o filho-da-puta”


«Estimados Compatriotas:

Acerca do filho-da-puta, como acerca de muitas outras coisas, correm neste país as mais variadas lendas. Há até quem seja de opinião de que o filho-da-puta a bem-dizer nunca existiu, dado que ele é apenas um modo de mal-dizer. Nada, porém, mais falso. É certo que o filho-da-puta às vezes não passa de um modo de dizer, mas não bastará a simples existência, particular e pública, de tão variados retratos seus, para arrumar com as dúvidas acerca da sua existência real? Pois quem teria imaginação suficiente para inventar tantas e tais variedades de filho-da-puta, caso ele não existisse? Não! O filho-da-puta existe. Em todos os lugares, excepto no dicionário. No dicionário existem variados filhos, entre eles o filho-família, o filhastro e o filhote, mas não existe o filho-da-puta. Em compensação, o filho-da-puta existe em todos os outros lugares. Claro que há lugares que ele de preferência ocupa e onde por conseguinte é mais frequente encontrá-lo; no entanto, exceptuando, como ficou dito, o dicionário, não há lugar onde, procurando bem, não se encontre pelo menos um filho-da-puta. Porque

o filho-da-puta existe e está praticamente em toda a parte: na escola e nas repartições, na indústria e no comércio, na cidade e nas serras, na rua e nas casas, e até nos cemitérios. Deste (exceptuando casos antigos ainda hoje falados, ou então muito recentes que deram que falar) pouco se sabe, como é natural. Desgraçadamente, porém, o mesmo sucede com muitos dos outros filhos-da-puta, e é isso mesmo que eu considero uma triste lacuna no nosso saber. Em grande parte dos casos, não se sabe deles mais que o que se sabe dos anjos, ou seja: que são seres de eleição que estão em toda a parte, mas que só por obras revelam a sua existência, a seres igualmente de eleição. É certo e sabido que filhos-da-puta menos sabidos não desgostam de se revelar; ainda neste caso, porém, não é fácil reconhecê-los, pois o filho-da-puta nem sempre usa sinais distintivos e

de resto, há filhos-da-puta que vestem bem e outros que vestem mal, filhos-da-puta garridos e filhos-da-puta soturnos, de uniforme e à paisana, de saias e de calças, de barba e sem barba, de bata branca e de bota preta. Nem sequer é fácil saber com segurança se o filho-da-puta tem predilecção por este ou por aquele traje: é certo que ele se mostra mais nuns que noutros, mas usa sempre o seu traje como a arquitectura de uma tragédia; para ele o nu é o ultraje, e por isso é que o filho-da-puta faz o o traje, embora o traje não faça o filho-da-puta.»

(…)

Discurso sobre o filho-da-puta, Alberto Pimenta (Ed. Teorema)